LER É BACANA

" Um público comprometido com a leitura é crítico, rebelde, inquieto, pouco manipulável... " Mario Vargas Llosa















31 de out. de 2011

A prosa de Guimarães Rosa

João Guimarães Rosa nasceu em Minas Gerais em 1908 e faleceu no Rio de Janeiro em 1967. Pelas inovações operadas na linguagem literária, Guimarães Rosa impôs-se como um verdadeiro marco na evolução de nossa literatura. Na elaboração de seu estilo, ele utilizou-se de vários processos: exploração dos aspectos sonoros, empregando aliterações, onomatopeias etc; criação de palavras; aproveitamento do linguajar regionalista pleno de arcaísmos, adaptação de termos e expressões extraídos de várias línguas modernas, além de recorrer ao grego e latim. Mas seu valor não está apenas na experimentação formal, pois a riqueza de sua linguagem expressa também uma profunda visão da existência humana. Embora sua obra esteja presa quase sempre ao sertão brasileiro, Guimarães Rosa conseguiu superar aquilo que é meramente regional para atingir o universal, através da aguda percepção dos problemas vitais que existem no interior do homem de qualquer região. Por esse motivo, sua obra aborda temas que envolvem indagações sobre o destino, sobre o significado da vida e da morte, sobre a existência ou não de Deus. Extraindo do regional matéria para a elaboração de uma obra que questiona o próprio sentido da vida, Guimarães Rosa revigorou a literatura regionalista brasileira.
Deixou-nos o romance Grande sertão: veredas (1956) e os seguintes livros de contos: Sagarana (1946); Primeiras estórias (1962); Tutaméia (1967); Estas estórias (1969). Escreveu ainda um conjunto de novelas: Manuelzão e Miguilim; No Urubuquaquá, no Pinhém; Noites do sertão, publicadas sob o título geral de Corpo de baile (1956), além de contos e textos avulsos reunidos em Ave, palavra (1970).

Grande sertão: veredas

Este romance é a grande obra de Guimarães Rosa. Num longo monólogo que vai do começo ao fim do livro, Riobaldo, ex-jagunço e chefe de bando, transformado no presente em pacato fazendeiro, conta a um suposto interlocutor suas aventuras da juventude, as pelejas de que participou, seus temores e dúvidas a respeito da existência de Deus e do Diabo.
Ao querer vingar a morte de loca Ramiro, chefe dos jagunços, assassinado à traição por Hermógenes, ex-companheiro de bando, Riobaldo procura fazer um pacto com o demônio para tornar-se capaz de destruir o traidor. Torna-se líder do bando que busca vingança e, depois de muitas peripécias, em que o comportamento de Riobaldo parece revelar poderes estranhos, os dois grupos se encontram. Diadorim, seu melhor amigo e por quem ele sentia uma estranha atração afetiva que tanto o perturbava, luta com Hermógenes e vence-o, mas vem a morrer também no combate. Então se descobre que Diadorim era mulher, filha de Joca Ramiro disfarçada em homem. Riobaldo, amargurado, atormentado pela dúvida da existência do demônio e da possibilidade de se fazer um pacto com ele, abandona a vida de jagunço e vai viver como um pacato fazendeiro.
Os acontecimentos narrados não seguem uma rígida ordem cronológica, mas obedecem ao vaivém das lembranças de Riobaldo, que pretende ao mesmo tempo narrar e compreender o que está por trás da narrativa, indagando-se sobre o sentido da existência humana, com o sertão representando o próprio mundo com seus mistérios e desencontros.
As indagações religiosas e metafísicas de Riobaldo a respeito de Deus, do pecado, do sentido da vida estão presentes em toda a narrativa, que constitui uma verdadeira aventura no interior do ser humano em busca das respostas para o mistério de sua condição.
Mais do que nunca, a linguagem altamente estilizada de Guimarães Rosa está presente, eliminando as barreiras entre a prosa e a poesia, conferindo ao romance múltiplas conotações que até hoje vêm desafiando a crítica literária.

Texto para análise
O trecho escolhido mostra o momento em que Riobaldo se propõe a fazer o pacto com o Diabo. A dúvida da realização ou não desse pacto, que se estende à existência ou não do Diabo, atormenta Riobaldo o tempo todo.
Ele tinha que vir, se existisse. Naquela hora, existia. Tinha de vir, demorão ou jàjão. Mas, em que formas? Chão de encruzilhada é posse dele, espojeiro de bestas na poeira rolarem. De repente, com um catrapuz¹ de sinal, ou momenteiro com o silêncio das astúcias, ele podia se surgir para mim. Feito o Bode-Preto? O Morcegão? O Xú? E de um lugar — tão longe e perto de mim, das reformas do Inferno — ele já devia de estar me vigiando, o cão que me fareja. Como é possível se estar, desarmado de si, entregue ao que outro queira fazer, no se desmedir de tapados buracos e tomar pessoa? Tudo era para sobrosso,2 para mais medo; ah, aí é que bate o ponto. E por isso eu não tinha licença de não me ser, não tinha os descansos do ar. A minha idéia não fraquejasse. Nem eu pensava em outras noções. Nem eu queria me lembrar de pertinências, e mesmo, de quase tudo quanto fosse diverso, eu já estava perdido provisório de lembrança; e da primeira razão, por qual era, que eu tinha comparecido ali. E, o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era — ficar sendo!
E foi assim que as horas reviraram. — A meia-noite vai correndo... — eu quis falar. O cote que o frio me apertava por baixo. Tossi, até. — "Estou rouco?" "Pouco..." — eu mesmo sozinho conversei. Ser forte é parar quieto; permanecer. Decidi o tempo — espiando para cima, para esse céu: nem o setestrelo, nem as três-marias, — já tinham afundado; mas o cruzeiro ainda rebrilhava a dois palmos, até que descendo. A vulto, quase encostada em mim, uma árvore mal vestida; o surro 3 dos ramos. E qualquer coisa que não vinha. Não vendo estranha coisa de se ver.
Ao que não vinha — a lufa4  de um vendaval grande, com Ele em trono, contravisto,5 sentado de estadela6 bem no centro. O que eu agora queria! Ah, acho que o que era meu, mas que o desconhecido era, duvidável. Eu queria ser mais do que eu. Ah, eu queria, eu podia. Carecia. "Deus ou o demo?" — sofri um velho pensar. Mas, como era que eu queria, de que jeito, que? Feito o arfo de meu ar, feito tudo: que eu então havia de achar melhor morrer duma vez, caso que aquilo agora para mim não fosse constituído. E em troca eu cedia às arras,7 tudo meu, tudo o mais — alma e palma, e desalma... Deus e o Demo! — "Acabar com o Hermógenes! Reduzir aquele homem!..." —; e isso figurei mais por precisar de firmar o espírito em formalidade de alguma razão. Do Hermógenes, mesmo, existido, eu mero8 me lembrava — feito ele fosse para mim uma criancinha moliçosa e mijona, em seus despropósitos, a formiguinha passeando por diante da gente — entre o pé e o pisado. Eu muxoxava.9 Espremia, p'r'ali, amassava. Mas, Ele — o Dado, o Danado — sim: para se entestar comigo — eu mais forte do que o Ele; do que o pavor d'Ele — e lamber o chão e aceitar minhas ordens. Somei sensatez. Cobra antes de picar tem ódio algum? Não sobra momento. Cobra desfecha desferido, dá bote, se deu. A já que eu estava ali, eu queria, eu podia, eu ali ficava. Feito Ele. Nós dois, e tornopio 10 do pé-de-vento — o ró-ró¹¹ girado mundo a fora, no dobar,¹² funil de final, desses redemoinhos:... o Diabo, na rua, no meio do redemunho... Ah, ri; ele não. Ah — eu, eu, eu! "Deus ou o Demo — para o jagunço Riobaldo!" A pé firmado. Eu esperava, eh! De dentro do resumo, e do mundo em maior, aquela crista eu repuxei, toda aquela firmeza me revestiu: fôlego de fôlego de fôlego — da mais-força, de maior-coragem. A que vem, tirada a mando, de setenta e setentas distâncias do profundo da gente. Como era que isso se passou? Naquela estação, eu nem sabia maiores havenças; eu, assim, eu espantava qualquer pássaro.

1 Catrapuz = catrapus; voz imitativa de uma queda repentina e ruidosa.
2 Medo; receio.       3 Sujeira. 4 Ventania.             5 Visto do lado contrário.      
6 Sentado de estadela = sentado num trono.       7 Cedia às arras = concordava com o pacto.
8 Pouco.                  9 Desprezava.                         10 Rodopio.                            
11 Onomatopeia do barulho do vento em redemoinho.       12 Rodopio.

Sapateei, então me assustando de que nem gota de nada sucedia, e a hora em vão passava. Então, ele não queria existir? Existisse. Viesse! Chegasse, para o desenlace desse passo. Digo direi, de verdade: eu estava bêbado de meu. Ah, esta vida, às não-vezes, é terrível bonita, horrorosamente, esta vida é grande. Remordi o ar:
— "Lúcifer! Lúcifer!..." — aí eu bramei, desengulindo.
Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum ser-só — que principia feito grilos e estalinhos, e o sapo-cachorro, tão arranhão. E que termina num queixume borbulhando tremido, de passarinho ninhante mal-acordado dum totalzinho sono.
— "Lúcifer! Satanaz!..."
Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.
— "Ei, Lúcifer! Satanaz, dos meus Infernos!"
Voz minha se estragasse, em mim tudo era cordas e cobras. E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem respondeu — que é um falso imaginado. Mas eu supri ¹³ que ele tinha me ouvido. Me ouviu, a conforme a ciência da noite e o envir de espaços, que medeia. Como que adquirisse minhas palavras todas; fechou o arrocho do assunto.14 Ao que eu recebi de volta em adejo, um gozo de agarro, daí umas tranquilidades — de pancada. Lembrei dum rio que viesse adentro a casa de meu pai. Vi as asas, arquei o puxo do poder meu, naquele átimo. Aí podia ser mais? A peta,15 eu queria saldar: que isso não é falável. As coisas assim a gente mesmo não pega nem abarca. Cabem é no brilho da noite. Aragem do sagrado. Absolutas estrelas!

{Grande sertão: veredas. 11. ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1976. p. 317-19.)
13 Convenci-me; acreditei. 
14 Fechou o arrocho do assunto = concordou com o pacto.
15 Mentira.

Questões
1. Observe que, logo no início, a primeira dúvida de Riobaldo é quanto à forma que o Diabo assumiria e ao modo como ele apareceria. Destaque passagens do texto que indicam essa incerteza de Riobaldo.
2. Por não saber como o Diabo poderia se manifestar, Riobaldo sente-se inteiramente à mercê de seu poder. Ele então procura ficar firme e seguro, para que o medo não o domine. Destaque passagens que evidenciam essa intenção de Riobaldo.
3. O fato de chegar a conversar sozinho é sinal de que estado de espírito de Riobaldo?
4. A que elementos é frequentemente associada a figura do Diabo?
5. Riobaldo estaria disposto a efetuar o pacto para obter o quê? Em troca, o que ele cederia?
6. Como se percebe, no terceiro parágrafo, o progressivo sentimento de confiança que vai tomando conta de Riobaldo?
7. Que importância tem no texto o momento em que Riobaldo ganha coragem para pronunciar o nome do Diabo e invocá-lo?
8. O que houve logo após a invocação do Diabo?
9. Você observou que Riobaldo emprega vários termos para designar o Diabo (no livro todo são empregados 73). No trecho dado, quais os nomes que aparecem?
10. Como se explica essa variedade de nomes com que se costuma designar o Diabo?

Fonte: estudos de Literatura Brasileira -  Douglas Tufano