LER É BACANA

" Um público comprometido com a leitura é crítico, rebelde, inquieto, pouco manipulável... " Mario Vargas Llosa















31 de out. de 2011

A Hora da Estrela - Clarice Lispector

     


Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta, continuarei a escrever. (...) Pensar é um ato. Sentir é um fato.
      Análise da professora Vera Regina
      Existe a necessidade constante de descobrir-se o princípio, mas o homem, limitado que é, não conhece a resposta a todas as perguntas. A personagem narradora não é diferente dos outros homens, porém, mesmo sem saber tais respostas, de uma coisa ela tem certeza e, por isso, ela afirma: "Tudo no mundo começou com um sim." É preciso dizer sim para que algo comece, por isso, ela diz "sim" a Macabéa. Alguém que forçou seud nascimento, sua saída de dentro do narrador, tornando-se a nordestina, personagem protagonista de seu romance.
      É o grito do narrador que aparece no corpo de Macabéa:
      Mas a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender, ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás - descubro eu agora - também não faço a menor falta, e até o que eu escrevo um outro escreveria. Um outro escritor sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas.
      Assim, ela é uma entre tantas, pois quem olharia para alguém com "corpo cariado", franzino, trajes sujos, ovários incapazes de reproduzir? Com ela o narrador identifica-se, pois ele também nada fez de especial (qualquer um escreveria o que ele escreve); teria de ser escritor, mas nunca escritora; por outro lado, não se pode esquecer de que quem escreve é Clarice Lispector, conforme se afirma na dedicatória.
      Dessa forma, desencadeia-se, na primeira parte do livro, todo um processo de metalinguagem, que entrecortará a narrativa até o seu desfecho. O narrador homem - Rodrigo S. M. - tecerá reflexões sobre a posição que o escritor ocupa na sociedade, seu papel diante dela e, principalmente, sobre o processo de elaboração da escritura de sua obra:
      Escrevo neste instante com prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa tão exterior e explícita. De onde no entanto até sangue arfante de tão vivo de vida poderá quem sabe escorrer e coagular em cubos de geléia trêmula. Será essa história um dia o meu coágulo? Que sei eu. Se há veracidade nela - e é claro que a história é verdadeira embora inventada - que cada um reconheça em si mesmo porque todos nós somos um e quem não tem pobreza de dinheiro tem pobreza de espíirito ou saudade por lhe faltar coisa mais preciosa do que ouro - existe a quem falte o delicado essencial.
      (...)
      Proponho-me a que não seja complexo o que escreverei, embora seja obrigado a usar as palavras que vos sustentam. A história - determino com falso livre arbítrio - vai ter uns sete personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro. Eu, Rodrigo S. M. Relato antigo, este, pois não quero ser modernoso e inventar modismos à guisa de originalidade. Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e ‘gran finale’ seguido de silêncio e chuva caindo.
      Ironizando, repetidas vezes, o desejo que os leitores têm da narrativa tradicional, Clarice Lispector (aqui transfigurada no narrador Rodrigo S. M.), em contrapartida, não abre mão de suas características mais marcantes, ou seja, a reflexão, o elemento acima do enredo, o "silêncio e a chuva caindo", que marcarão a personagem protagonista.
      Como contar a vida sem menti-la? Para isso, pondera o narrador, a narrativa há de ser simples, sem arte. O narrador está enjoado de literatura. Não usará "termos suculentos", "adjetivos esplendorosos", "carnudos substantivos", verbos "esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação". A linguagem deve ser despojada para ser precisa e para poder alcançar o corpo inteiro e vivo da realidade.
      Como escreve o narrador?
      Verifico que escrevo de ouvido assim como aprendi inglês e francês de ouvido. Antecedentes meus do escrever? Sou um homem que tem mais dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo um desonesto. (...) Que mais? Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim.
      Chegamos, aqui, ao ponto mais importante desse trabalho de metalinguagem: a consciência do escritor como um marginalizado. É aqui que o narrador se funde com sua personagem: ambos são marginalizados, num espaço que não os aceita. Tal fusão se dá em todos os níveis - não apenas no desejo de simplicidade da linguagem despojada; para poder falar de Macabéa, o escritor torna-se um trabalhador braçal, faz-se pobre, dorme pouco, adquire olheiras fundas e escuras, deixa a barba por fazer, lidando com uma personagem que insiste, com seus dezenove anos, mesmo tendo "corpo cariado", comparada a uma "cadela vadia", "numa cidade toda feita contra ela", em viver. Assim, personagem e narrador dão seu grito de resistência em busca da vida.
      A resistência de Macabéa pode ser representada, por exemplo, nos momentos em que sorri na rua para pessoas que sequer a vêem; a resistência do narrador, na busca da palavra, cheia de sentidos secretos... a "coisa", que, quando não existe, deve ser inventada (o narrador escritor como senhor da criação).
      Tanto Macabéa como a palavra são pedras brutas a serem trabalhadas. A palavra será a mediadora entre o narrador e o leitor, e entre o leitor e Macabéa, pois é por meio dela que conheceremos a história da personagem, os fatos e, principalmente, o nascimento deles. O narrador, ao contar Macabéa, conta a si mesmo, não só pelas sucessivas identificações com a personagem, mas porque ela sai de dentro de si, imanente que é a ele ("pois a datilógrafa não quer sair de meus ombros.") .
      Dessa união, nasce uma nordestina vinda de Alagoas para o Rio de Janeiro. Datilógrafa, "o que lhe dava alguma dignidade", fazendo-a acreditar que tal profissão indicava que "era alguém na vida" (aqui, não lhe passa pela cabeça que é uma péssima profissional, semi-analfabeta... ela não tem consciência de nada disso).
      Alguém com aparência bruta, capaz de enojar suas quatro companheiras de quarto (na pensão onde morava), trabalhadoras das Lojas Americanas:
      "... dormia de combinação de brim, com manchas bastante suspeitas de sangue pálido (...) Dormia de boca aberta por causa do nariz entupido.
      (...)
      Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de não-sei-o-quê com ar de se desculpar por ocupar espaço. No espelho distraidamente examinou as manchas do rosto. Em Alagoas chamavam-se ‘panos’, diziam que vinham do fígado. Disfarçava os panos com grossa camada de pó branco e se ficava meio caiada era melhor que o pardacento.
      Ela toda era um pouco encardida pois raramente se lavava. De dia usava saia e blusa, de noite dormia de combinação. Uma colega de quarto não sabia como avisar-lhe que seu cheiro era murrinhento. E como não sabia, ficou por isso mesmo, pois tinha medo de ofendê-la. Nada nela era iridescente, embora a pele do rosto entre as manchas tivesse um leve brilho de opala. Mas não importava. Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio.
      (...)
      Assoava o nariz na barra da combinação. Não tinha aquela coisa delicada que se chama encanto. Só eu a vejo encantadora. Só eu, seu autor, a amo. Sofro por ela.
      Sua falta de percepção física acompanha a psicológica. Começa com o fato de ela ser alvo fácil da sociedade consumista e da indústria cultural: gosta de colecionar anúncios; seus parcos conhecimentos são extraídos da Rádio Relógio (informações ouvidas, mas nunca entendidas); gosta de cachorro-quente e coca-cola. Aceita tudo isso sem questionar, pois teme as conclusões a que pode chegar (arrepende-se em Cristo por tudo, mesmo não entendendo o que isso significa; não se vingava porque lhe disseram que isso é "coisa infernal"; apaixona-se pelo desconhecido, como no caso da palavra "efemérides", mas nunca procurava, efetivamente, conhecer o incognoscível, pois era mais fácil aceitar aceitar-lhe a existência e admirá-lo a distância).
      Conseqüentemente, torna-se personagem "torta", de tanto encaixar-se num meio que tanto a repele. O próprio emprego de datilógrafa é revelador: ela o era por acreditar que este lhe dava alguma dignidade. Buscava a dignidade, como se não tivesse direito a ela. Outro dado revelador é seu relacionamento com Olímpico, desculpando-se com ele todo o tempo, chegando a dizer-lhe que não é muito gente, que só sabe ser impossível.
      Ela não se defende por seus próprios valores, mas tenta adaptar-se aos valores do namorado, nunca discutindo a validade deles.
      Olímpico representa o contraponto em relação a Macabéa. Seus valores em nada se relacionam aos dela: metalúrgico, quer ser deputado, afastar-se de Macabéa e ficar com Glória, a loira oxigenada, colega de trabalho de Macabéa; afinal, o pai dela era açougueiro, o que lhe dava maiores perspectivas de vida.
      E tudo isso é, literalmente, engolido, tão deglutido, que ela não admite a idéia de vomitar; afinal, isso seria um desperdício.
      Ao mesmo tempo, é sensual em seus pensamentos, ou nos momentos de solidão, como quando viu o homem bonito no botequim, ou ainda quando ficou em casa - ao invés de ir trabalhar - vivendo a sensação de liberdade.
      O prazer em Macabéa é algo que sempre se alia à dor. Ao ver o homem, por exemplo, apesar do prazer que tal visão lhe dá, há o sofrimento por não o possuir e por ter a certeza de que alguém assim é mesmo só para ser visto. Macabéa já havia experimentado essas sensações contraditórias com outra pessoa, a tia, que, ao bater na menina, sentia prazer ao vê-la sofrer: "... e ela era só ela", imune à vida, vida que era morte, por tanta aceitação.
      O instinto de vida, que está ligado ao prazer, vem sustentáa-la. Diz o narrador: "Penso no sexo de Macabéa (...) seu sexo era a única marca veemente de sua existência."
      E ainda, mais adiante, ligando o prazer à morte: "Ela nada podia mas seu sexo exigia, como um nascido girassol num túmulo."
      De que "relação sexual" se pode falar no caso de Macabéa? Da relação com a própria vida, que ela insiste em manter, no seu conceito tão particular de beleza: usava batom vermelho, queria ser atriz de cinema com Marylin Monroe, apreciava os ruídos, pois eram vida.
      Essas sensações se intensificam quando vai à cartomante Carlota (por recomendação de Glória), no momento em que esta lhe revela: a felicidade viria de fora, do estrangeiro. A cartomante mostra-lhe a tragédia que é sua vida (coisa de que, até o momento, não havia tomado consciência), mas, ao mesmo tempo, dá-lhe a esperança de acreditar que as coisas poderiam ser diferentes... a possível felicidade.
      Quando sai da casa da cartomante, é atropelada por Hans, que dirigia um automóvel Mercedes-Benz, momento em que a vida se torna "um soco no estômago":
      Por enquanto Macabéa não passava de um vago sentimento nos paralelepípedos sujos. (...)
      Tanto estava viva que se mexeu devagar e acomodou o corpo em posição fetal. Grotesca como sempre fora. Aquela relutância em ceder, mas aquela vontade do grande abraço. Ela se abraçava a si mesma com vontade do doce nada. Era uma maldita e não sabia. (...)
      A morte dela é o momento em que Eros (Amor) se une a Tanatos (Morte), vida e morte, num momento doce, e sensual:
      "Então - ali deitada - teve uma úmida felicidade suprema, pois ela nascera para o abraço da morte. (...) E havia certa sensualidade no modo como se encolhera. Ou é como a pré-morte se parece com a intensa ânsia sensual?
      É que o rosto dela lembrava um esgar de desejo. (...)
      Se iria morrer, na morte passava de virgem a mulher. Não, não era morte pois não a quero para a moça: só um atropelamento que não significava sequer um desastre. Seu esforço de viver parecia uma coisa que se nunca experimentara, virgem que era , ao menos intuíra, pois só agora entendia que mulher nasce mulher desde o primeiro vagido. O destino de uma mulher é ser mulher. Intuíra o instante quase dolorido e esfuziante do desmaio do amor. Sim, doloroso reflorescimento tão difícil que ela empregava nele o corpo e a outra coisa que vós chamais de alma. (...)
      Nesta hora exata, Macabéa sente um fundo enjôo de estômago e quase vomitou, queria vomitar o que não é corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas.
      O que é que eu estou vendo agora é e que me assusta? Vejo que ela vomitou um pouco de sangue, vasto espasmo, enfim o âmago tocando no âmago: vitória!
      Sua boca, agora, vermelha como a de Marylin Monroe, no apogeu orgásmico da morte, grita, pela primeira vez, depois de vomitar, à vida:
      E então - então o súbito grito estertorado de uma gaivota, de repente a águia voraz erguendo para os altos ares a ovelha tenra, o macio gato estraçalhando um rato sujo e qualquer, a vida come a vida.
      Chegamos, afinal, ao momento da epifania do narrador fundido à Macabéa: é a vida que grita por si mesma, independente da opressão e da marginalização social. O momento, entremeado com silêncio, da consciência a que se chega pelo ato de escrever:
      (...) O instante é aquele átimo de tempo em que o pneu do carro correndo em alta velocidade toca no chão e depois não toca mais e depois toca de novo. Etc. , etc., etc. No fundo ela não passara de uma caixinha de música meio desafinada.
      Eu vos pergunto:
      - Qual é o peso da luz?
      E agora - agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas - mas eu também?!
      Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos.
      Sim.
      Enfim, descobrimos, agora, que tudo começa e acaba com um sim. Também é preciso coragem para morrer, silêncio para ouvir o grito da vida.

Primeiras Estórias (1962) - João Guimarães Rosa

    

  Gênero literário
      O próprio autor cunhou o gênero estória como conto breve.
      Época
      Terceiro tempo do Modernismo brasileiro, também conhecido na história da literatura brasileira como Geração de 45, que tem como expoentes, além de Guimarães Rosa, prosa de Clarice Lispector e a poesia de João Cabral de Melo Neto.
      Contexto histórico-cultural
      BRASIL – Política e economia: anos JK, o "presidente bossa-nova"; euforia desenvolvimentista? industrialização acelerada do País ? Plano de Metas = 50 anos em 5; fundação de Brasília; instalação da indústria automobilística.
      Literatura: Concretismo = poesia verbivocovisu-al: Haroldo de Campos, Augusto de Campos, Décio Pignatari, José Paulo Paes, Pedro Xisto, José Lino Grunewald.
      Musica popular brasileira: Bossa Nova João Gilberto, Johnny Alf, Tom Jobim, Vinícius de Mo-raes, Carlos Lyra, Ronaldo Bôscoli, Luís Bonfá, Edu Lobo, Sérgio Ricardo, Juca Chaves, Jorge Ben(jor), Maysa, Agostinho dos Santos.
      Cinema novo: Nelson Pereira dos Santos, Roberto Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Gláuber Rocha.
      Teatro: fim da geração TBC e início das gerações Arena e Oficina.
      Futebol: seleção brasileira, bicampeã do mundo (1958 e 1962).
      Comportamento: juventude transviada; geração Coca-Cola; participação estudantil: atuação permanente da UNE.
      MUNDO
      Invenções: vacina Sabin (pólio, 1955); Sputnik (1957, URSS inicia a corrida espacial).
      Política: XX Congresso do PC da URSS (1958: a desestalinização); Revolução Cubana (1958).
      Filosofia: Existencialismo, com Jean-Paul Sartre.
      Literatura e cinema: Nouvelle Vague Robbe-Grillet; filmes de Louis Malle, François Truffaut, Jean-Luc Godard.
      Musica: explosão do rock-and-roll, com Elvis Presley, Bill Halley, Little Richard, Chuck Berry, Paul Anka.
      Categorias
      Conforme a organização dos enredos e dos núcleos temáticos, as estórias pode ser classificadas em cinco categorias.
      Loucura
      Sorôco, sua mãe e sua filha
      Nada e a nossa condição
      O cavalo que bebia cerveja
      -A benfazeja
      Darandina
      Tarantão, meu patrão
      Infância
      As margens da alegria
      A menina de lá
      Pirlimpsiquice
      Partida do audaz navegante
      Os cimos
      Violência
      Famigerado
      Os irmãos Dagobé
      Fatalidade/Misticismo
      A terceira margem do rio
      Nenhum, nenhuma
      O espelho
      Um moço muito branco
      Amor
      Sequência
      Luas-de-mel
      Substância  
        

   Estilo rosiano
      Em Primeiras Estórias, conforme a pesquisa levantada por Paulo Ronai (publicada na introdução da obra, quando esta era editada pela José Olympio) e a de Mary Lou Daniel (em João Guimarães Rosa: travessia literária), destacam-se os seguintes processos de invenção verbal:
      Aglutinação de palavras:
      "equiparado" (= equus, em latim, cavalo + parado); "sussurruído" (= sussurro + ruído); "descrevivendo" (= descrever + escrever + vivendo); "beladormeceu" (= bela + adormeceu); "tutanico" (= tutano + titanico); "terrivorosos" (= terríveis + vorazes + horrorosos); "personagente" (= persona, máscara, em latim + personagem + gente); "pensamor" (= pensamento + amor); "enxadachim" (= enxada + espadachim).
      Palavras que permutam de classes gramaticais:
      "Desço em pulos passos" (substantivo usado como advérbio)
      A gente pensava num logo luar" (advérbio usado como adjetivo)
      Ênfase através de repetição de palavra:
      "Infância é coisa, coisa?"
      "Porque eu desconheci meus Pais – eram-me tão estranhos; jamais poderia verdadeiramente conhecê-los, eu, eu?"
      Permutação de tempo e modo verbais:
      "Nem, olhasse mais a paisagem" (olhasse, imperfeito do subjuntivo usado como futuro do pretérito, olharia)
      "Só ele conhecesse, a palmos, a escuridão daquele brejão" (conhecesse, imperfeito do subjuntivo usado como presente do indicativo, conhece)
      Uso do artigo definido antes de pronomes indefi-nidos:
      "as muitas pessoas"; "a alguma alegria"; "o parente nenhum"
      Associação entre som e sentido – aliterações e assonâncias:
      "Miúdo, moído..."; "leigos, ledos, lépidos" "chiquetichique"
      Desarticulasses ou desvios sintáticos:
      "A gente fica quase presos, alojados na cozinha" (silepse de número, o predicativo concorda com a idéia de plural contida, pressuposta no sujeito)
      Uso do anacoluto:
      "Tia Liduina, que durante anos de amor tinham-na visto sorrir sobre sofrer [...]. Tia Liduina, que já fina música e imagem."
      Desdobramento de palavras através de sufixos pomposos:
      "furibundância"; "circunspectância"; "blasfemífero"
      Palavras de efeito grandiloqente e pedante:
      "Só vivo no supracitado"; "Aquele senhor provisoriamente impoluto"
      Inversão de lugares-comuns ou frases feitas:
      "a menos não poder"; "com nenhum titubeio"; "com cara de nenhum amigo"; "E era o impasse da mágica"; Um deu-nos-sacuda (deus-nos-acuda); prevenido para valer por quatro; "o feio está ficando coi-sa..."
      Citação ou criação de provérbios sertanejos:
      "De pobre não me sujo, de rico não me emporca-lho."
      "Eu ponho a mesa e pago a despesa."
      "Aroeira de mato virgem não alisa."
      "Herói e no que dói."
      "Para o pobre, os lugares são mais longe."
      "Quem sou eu, quati, para cachorro me latir?"
      Prosa rimada na forma de pares justapostos:
      "E entrou – de peito feito"; "Moço esporte de forte."
      Repetições múltiplas para provocar intensidade emocional:
      "... ele me pareceu vir: da parte do além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão." "Mato o Magrinho, é hoje, mato e mato, mato, mato!"
      Mistura de vocabulário coloquial e erudito:
      "Nosso homem, ignaro, escalara dela o fim, e fino. Susteve-se. [...) ao topo se encarapitava, safado, sabiá, no páramo empíreo. Paravam os de seu perséquito, não menos que eu surpresos, detidos, aqui em nível térreo, ante a infinita palmeira."
      Criação de novos substantivos abstratos:
      "eu já declinava para nãoezas?" (derivado do advérbio não)
      "De roda, na vislumbrança, o que dos vales e serros vem e o que o horizonte é – tudo em tudo." (derivado do verbo vislumbrar = ver indistintamente, ao longe) "Mas o tucano, sem falta, tinha sua soência de sobrevir... no pintar da aurora." (derivado do verbo soer = costumar, ter por hábito).
      Flexão de palavras invariáveis:
      "Ah... e quase, quasinho... quasesinho, quase... Era de horrir-me o pêlo."
      Verbos formados a partir de adjetivos:
      "Cabisbaixara-se. Tio Man'Antônio, no dizer essas palavras..."
      " – 'Falsa a beatinha e tu! ' – Brejeirinha se mal-criou."
      Abrasileiramento de palavras estrangeiras:
      "Eu, Reivalino Belarmino, capisquei." (do italiano capire (= compreender)
      "Li se ia, se fugia, o meu esmarte patrão." (do inglês smart = astuto, esperto, sagaz, ladino)
      Enredos das Primeiras Estórias
      I – As margens da alegria: Um Menino descobre a vida, em ciclos alternados de alegria (viagem de avião, deslumbramento pela flora e fauna) e tristeza (morte do peru e derrubada de uma árvore).
      II – Famigerado: Damázio Siqueira, homem sim-ples, atormenta-se com um problema vocabular: ouviu a palavra "famigerado" de um moço do gover-no e vai procurar o farmacêutico, pessoa letrada do lugar, para saber se tal termo era um insulto contra ele, jagunço.
      III – Sorôco, sua mãe, sua filha": Um trem aguarda a chegada da mãe e da filha de Sorôco, para conduzi-las ao manicômio de Barbacena. Durante o trajeto até a estação, levadas por Sorôco, elas começam surpreendentemente a cantar. Quando o trem parte, Sorôco volta para casa cantando a mesma canção, acompanhado pelos amigos da cidadezinha que, solidariamente, passam a cantar junto.
      IV – A menina de lá: Nhinhinha possuía dotes paranormais: seus desejos, por mais estranhos que fossem, sempre se realizavam. Isolados na roga, seus parentes guardam em segredo o fenômeno, para dele tirar proveito. As reticentes falas da menina tinham caráter de premonição: por exemplo, o pai reclamara da impiedosa seca. Nhinhinha "quis" um arco-íris, que se fez no céu, depois de alentadora chuva. Quando ela pede um caixãozinho cor-de-rosa com enfeites brilhantes, ninguém percebe que o que ela queria era morrer...
      V – Os irmãos Dagobé: O valentão Damastor Dagobé, depois de muito ridicularizar Liojorge, e morto por ele. No arraial, todos dão como certa a vingança dos outros Dagobé: Doricão, Dismundo e Derval. A expectativa da revanche cresce quando Liojorge comunica a intenção de participar do enter-ro de Damastor. Para surpresa de todos, os irmãos não só concordam, como justificam a atitude de Liojorge, dizendo que Damastor teve o fim que merecia.A violência Iminente: o sertão e a era civilizatória no conto “Os irmãos Dagobé”, de Guimarães Rosa”
Nome: Paula Roberta Gabbai Armelin nº. USP: 5420999
Prof. Dr.: José Miguel Wisnik
Disciplina: Literatura Brasileira II
Resumo:
O conto “Os irmão Dagobés” permite identificar aspectos do hábito da violência sertaneja, não por meio da luta de morte, mas através da expectativa de um coro, que na voz narrativa, especula a todo o momento o destino do “lagalhé” Liojorge, que, em gesto de legítima defesa, mata o “facínora” Damastor. Elementos de ambivalência e grande poder simbólico entrelaçam a trama, colocando lado a lado um passado brasileiro marcado pela exploração e o país emergindo como possibilidade do moderno, gerando nesse entremeio a latente interrogação: a civilização se sobrepõe ao sertão? No entanto, a resposta não parece estar contida nos extremos. Nem sertão, nem cidade. Mas um contínuo, uma mistura indissolúvel se instaura, construindo na voz de Guimarães Rosa, sob a forma do recado, o mistério da história brasileira.
Em “Primeiras Estórias”, publicado em 1962, as fronteiras entre sertão e cidade parecem não bem configuradas. Nas obras anteriores a cidade está presente, ou seja, os seus problemas e seu confronto com o sertão estão colocados, mas abstraindo-se os elementos urbanos. “Primeiras Estórias” é o livro em que a cidade começa a emergir de fato no mundo roseano, o mundo sertanejo acusa sinais expressos de urbanização. Nesse mesmo sentido, o desenlace do conto “Os irmãos Dagobé”, assim como em “Fatalidade” e outros contos, aponta um mote do livro que os contém: a violência iminente que, em uma espécie de reviravolta, não se dá. Serão estes sinais da extinção das regras de mandonismo, tão características do sertão, e, portanto, o advento por completo da era civilizatória?
Para começar a resolver essa questão talvez seja essencial atentar para o espaço em que se desenrola o conto “Os irmãos Dagobé”. Podemos dizer que este se insere em uma realidade sociocultural sertaneja de pequenos vilarejos, recorrente no conjunto de contos do livro; é um arraial anônimo, que conta com cemitério e igreja, mas em que o velório do (ex)mandão Damastor é feito em casa, acompanhado por um pequeno aglomerado de gente, ao foco de “lamparinas e lampiões” , sendo descrito pelo narrador como “à moda de lá”. Neste espaço impera um machismo exacerbado, sem a “mulher em lar” e sem a presença de representantes de qualquer autoridade (“no lugar não havia padre”).
Dessa maneira, as regras de convivência se mostram definidas, mais uma vez, nas relações de mandonismo, em que a vingança é obrigatória, de violência cordial, num ponto de quase coincidência entre a reverência e a ameaça, diante de uma lei não fundada, ou seja, estamos diante da ausência de uma instância que simbolize e aponte para além do particular. Eis uma reflexão fundamental em Guimarães Rosa, que corrobora para a obra “Primeiras Estórias” vibrar como um conjunto harmonioso de contos: nos dois extremos do livro com “As margens da alegria” e “Os cimos” está a construção da “cidade mais alevantada do mundo”, uma cidade planejada, não nomeada, para não reduzir o horizonte de leitura, mas com indícios poderosos de ser Brasília, contendo nela algo de muito ambíguo, por ser a ocupação contrária à colonização do Brasil. O livro, como conjunto, aponta para o momento em que o Brasil emerge como possibilidade de moderno, mas sendo e contendo em si o arcaico. Nesse sentido, a mudança dos Dagobés, expressa através de Doricão ( “A gente, vamos [...] morar em cidade grande”) pode ser indício de uma violência, de um costume se transfere para a cidade. As narrativas deixam esse conflito latente no ar, ou seja, na euforia modernizante, as cidades ainda são sertão. Assim, a mudança dos irmãos é índice de transformações, mas transformações muito relativas, pois a lei de Estado sempre se mostrou inseparável do mandonismo local, reciclando e recompondo a velha estrutura, ou seja, o poder “federal” se realizou através do poder local, com relações de coronelismo; aos fazendeiros foi consagrado poder militar, gerando alianças entre o local e o nacional. Estas são maneiras de oficializar os mecanismos dos mandões, gerando a confusão que vigora firmemente nos dias de hoje entre o poder e a propriedade, entre o público e o privado. Como observa Wisnik , a atualidade de Guimarães nos possibilita pensar não em algo de profético, mas em uma espécie de recado, captando sutilmente a violência latente que continua passando como enigma que interroga a singularidade da experiência brasileira.
Nesse sentido, destaca-se a postura que o narrador do conto “Os irmãos Dagobé” assume, sem onisciência alguma, como um mero participante do evento que conta, o velório do “facínora” Damastor, “o mais velho dos irmãos”, nos permite enxergá-lo como porta voz do comportamento dos seus semelhantes, resignados a sofrer os desmandos dos valentões, como se habituados à situação. O hábito se constrói com o tempo, gera os costumes e tem a poderosa força de desfazer as estranhezas. Dessa maneira, é através do contar desse narrador, ou seja, do seu fazer simbólico, que compreendemos a reação da “pequena multidão” presente no velório. Interessante notar que aparentemente o motivo da presença dessa gente é mais por curiosidade a cerca dos destinos de Liojorge, fazendo especulações a todo tempo. É um conto, portanto, que tem uma espécie de coro, a exemplo de “A terçeira margem do rio”, em que o grupo social se junta, arma-se para reagir à quebra de código feita pelo pai: ter como habitat o rio, contrariando o hábito. Esse coro levanta hipóteses para explicar essa situação insólita, como a “razão de que não queriam falar: doidera”, “pagamento de promessa” ou “por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja a lepra”. Na estória dos Dagobés, o coro acompanha os acontecimentos e exprime, com cautela e sussurros, suas reações através da voz narrativa, desprovida de qualquer imparcialidade. O narrador se posiciona desde o início (“enorme desgraça”) e prenuncia do começo ao fim do conto, em gradação crescente, uma catástrofe (“saboreavam já o sangrar”, “já estavam de mira firmada” “à queima bucha o matavam”), que deveria se dar, seguindo a regra da vingança obrigatória, “sangue por sangue”, (“espantavam-se de que os irmãos não tivessem obrado a vingança”) e a maldade essencial dos irmãos, “gente que não prestava”, se mostrando incapaz de imaginar nos protagonistas novos critérios. Assim, nesse momento, atentamos para as estâncias do Real, do Imaginário e do Simbólico , que, como argolas entrelaçadas, são base da nossa construção psíquica. O Real é o estado bruto das coisas, independente da linguagem ou da visão de mundo do sujeito; o Imaginário é a construção de imagens através das quais damos sentido de todo ao Real e o Simbólico é fundamentalmente, a linguagem, o contar. O leitor envolvido pela visão expressa pelo narrador, fica na espera de uma catástrofe, preparada pelos irmãos, cínica e bem articulada, e engana-se na idéia de que Liojorge está amedrontado, recuado, “solitário em casa, resignado já ao péssimo, sem ânimo de nenhum movimento” e, que, portanto, a partir de um real (fato de ter assassinado Damastor) está preso num imaginário, como se imaginando a própria morte. Mas o narrador erra em todas as hipóteses que constrói, pois o desenrolar da estória mostra o contrário: Liojorge, por meio do recado, já estava agindo, ou seja, Liojorge se salva justamente através do simbólico, por meio da linguagem. Nesse sentido, os três irmãos que restaram, em uma espécie de reviravolta, não atacam o “rapaz Liojorge”, “estimado de todos”, a vingança iminente não se dá. Assim o medo que o narrador deveria passar ao seu espectador vira recurso cômico de contador de estórias que mantém a expectativa do leitor para e frustrá-la ao final.
Com isso, o conto de desenrola (a exemplo do conto “Fatalidade”), como uma paródia de bangue-bangue, em que os atores não correspondem aos estereótipos do gênero, pois nem o bom moço, Liojorge, que “não tinha querido matar”, salva o povo das maldades dos Dagobés e assume o comando do arraial, nem os irmãos que restaram executam a regra de vingança em resposta à morte do chefe. Aliás, nem o duelo, característico do gênero bangue-bangue, entre o mocinho e o mandão é descrito, sendo anterior ao evento narrado. A morte de Damastor é assinalada por uma única frase feita, que, se não bastasse, ainda é irônica e deturpada: “Até aí viveu o Telles”, A frase feita, na verdade, seria “Até aí morreu o Neves”, que significa vamos adiante... você não disse nada de novo. Além de tudo, quem mata o temível mandão Damastor, é o “ pacífico e lagalhé”, Liojorge, sem aparência nenhuma de extremos, seja, de herói, seja de assassino. A respeito do vocábulo “lagalhé”, João Ribeiro (1908) esclarece, como sendo o indivíduo sem insignificante e sem importância social; a palavra tem origem latina, leguleius, “o rábula que conhece apenas de memória o texto das leis e não tem carta para advogar. Os leguleios, por numerosos e sem consideração ou importância são lhagalhés e opõem-se aos doutores”
Esse poder de empregar elementos precisos e concisos, por serem carregados de sentidos diversos e, muitas vezes, oriundos das mais variadas esferas da sociedade, do erudito ao popular, da literatura tida como “clássica” aos mais diversos manuais de literatura “não oficial” e ainda, com o direito a todo tipo de aberrações fonéticas, revela o poder de simbolização, ou seja, a maestria de uso da linguagem em Guimarães Rosa, o que nos leva a, de certa maneira, desconfiar de cada palavra, de cada expressão inserida no texto. Assim, talvez devamos pensar que não seja exatamente coincidência a causa de os quatro irmãos terem o nome (além do sobrenome) iniciado pela letra “D”: Damastor, Doricão, Dismundo e Derval. Aliás, os nomes de personagem aparecem não raras vezes como elemento muito carregado de sentido na obra do autor, vale lembrar o famoso “Recado do Morro”, em que símbolos míticos são disfarçados e insinuados em nomes sertanejos ao longo das viagens, tanto do recado, quando da comitiva: Saturnino, Jove, Dona Vininha, Nhô Hermes, Nhâ Selena, Marciano e Apolinário, podem ser lido interpretativamente como, Júpiter, Vênus, Mercúrio, a Lua, Marte e o Sol, que são as fazendas pelas quais a comitiva passa, representando uma viagem que vai do chumbo ao ouro, do opaco ao iluminado, mas com mediações, que incorpora sentidos diferentes. Inseridos também nessa ligação entre símbolos celestes e a vivência humana, que faz do céu um grande livro, estão os sete recadeiros, todos lunáticos, mas um diferente do outro, cada um com a sua motivação: Gorgulho é saturnino, sua motivação é de colocar limite; Catraz se relaciona com Vênus, sua motivação é de se casar, de uma vida amorosa, a imaginação é o seu maior canal de contato com o mundo; o “menino Joãozezim”, com a motivação de contar ao outro, de das forma verbal, de falar, se relaciona com Mercúrio; Guegue, de atenção flutuante, preso àquilo que muda, estabelece relação cambiante com o mundo e, assim, nos remete à Lua; Nomindome, traz o tema da urgência do tempo, motivado pela tensão, conflito, pela urgência diante da ameaça, nos remete a Marte; o coletor, sexto recadeiro, traz em si a sensação de ordem do mundo, relacionando-se com Júpiter e , por fim, está Laudelim, que da forma ao recado, pois ouve sem se apegar, através de uma atenção que logo escapa, representando o Sol.
Assim, para os irmãos Dagobé, mais uma vez a onomástica, estudo e investigação a cerca de nomes próprios, mostra-se uma importante chave interpretativa para a obra de Guimarães Rosa e, portanto, levantamos algumas hipóteses (nada impede que elas atuem conjuntamente) para a insistência na letra “D”. Primeiramente, podemos pensar no fato de que algumas famílias realmente nomeiam os filhos de modo que haja alguma relação entre os nomes, simbolizando a ligação, a proximidade familiar. Por outro lado, podemos pensar que os próprios nomes já trazem em seu significante, nesse insistência fonética, o caráter seqencial da chefia desse mandonismo sertanejo, que começa com o filho mais velho ( Damastor) e deve seguir por ordem de idade. Para essa hipótese corrobora a postura de Doricão “agora o mais velho, mostrava-se já solene sucessor”, “corpulento”, “com especial compostura”. No entanto, Francis nos revela uma forte possibilidade: a inicial repercute a marca diabólica em cada prenome. Em Doricão há o par “Dor” e “Cão”; em Dismundo, a discórdia global , através da raiz germânica “mund”: “aquele que não oferece proteção”; Derval, também através de raiz germânica “wald”: “ aquele que governa”, sugere o desgoverno. Tudo isso em plena contradição com algo de positivo no sobrenome, também de origem germânica, “Dag”, “brilhante”. A riqueza da linguagem de Guimarães parece nunca se esgotar, trazendo novas “perturbações” a cada nova leitura, possibilitando novas, reveladoras e inúmeras camadas de sentido. O sobrenome “Dagobé” ainda possibilita associação com Dagnbé, a serpente do Vodum , princípio da mobilidade e da eternidade das forças criadoras.
Também em Liojorge, “lagalhé pacífico e honesto” traz seu nome um recado : Lio remete a “leão” e Georgios indica “agricultor. Este é sutilmente revelado ao leitor ao longo do conto: “Liojorge, ousado lavrador”, é o homem do trabalho com a terra.
Ao cumprir o “destino” trazido no recado do nome, Liojorge parece impedir que os antagonistas cumpram o deles. De fato, com a morte do irmão mais velho, o chefe Damastor, a maldade não de perpetua, pelo menos em um primeiro momento, já que a questão fica no ar com a mudança para a cidade. Assim, o comportamento dos irmãos, “serenos, e, até sem folia mas com alguma alegria”, eles “não conseguiam disfarçar o certo solerte contentamento, perto de rir” apesar dos juízos feitos pelo narrador ao longo de toda narrativa, revela-se altamente ambíguo, principalmente no que diz respeito ao irmão caçula, Derval, “se mexia, social, tão diligente para os que chegavam ou estavam: - ‘Desculpe os maus tratos’, este irmão estaria mais longe de orquestrar as maldades. Nesse sentido, em Doricão, supostamente o próximo mandão, parece haver um esforço para manter a “especial compostura”. É quase como se a morte do irmão “cabeça, ferrabrás e mestre” livrasse os outros três de uma espécie de dever de maldade, afinal, fora o mais velho que “botara na obrigação da ruim fama os mais moços”.
Inserido nessa mesma rede de ambigidades, está a figura do mandão: ele é a propriedade e a lei, pode decidir arbitrariamente, mas, ao mesmo tempo, é paternal e hospitaleiro: eis o homem cordial brasileiro, um dos elementos de raiz da confusão entre público e privado, que perdura até os dias de hoje. Esse é uma das possíveis interpretações para o comportamento dos irmãos, que apesar de “brutos só de assomos”, “faziam as devidas honras”.
Nesse mesmo sentido, parece-nos uma provável hipótese que a crise do mandão chefe se dê por excesso de mandonismo, algo de falta da noção do limite ou excesso de uso de poder, em menor intensidade, mas à semelhança do que ocorre no conto “A hora e a vez de Augusto Matraga”, em que o mandão fica enredado numa iminência de perda do poder, incluindo a fuga da mulher e dos jagunços, que passam para o lado do major. Para essa hipótese colabora o fato de que Damastor, teria atacado o rapaz Liojorge aparentemente sem motivo algum, “sem sabida razão ameaçara-lhe de cortar as orelhas”, o que resulta em uma ação de legítima defesa do bom moço, instalando a iminência de uma vingança.
Dessa violência iminente, que não se realiza, fica uma sombra indicada na intermitência da chuva, no velório e no enterro, simétrica ao vagalume de “As margens da Alegria” e que recomeça simbolicamente na passagem em direção à “cidade grande”. O narrador descreve, mas não interpreta essa intermitência com um possível, embora não absoluto, significado de purificação. Com a noite do velório, dois focos se instalam: a casa em que se passa o velório, lugar de aglomeração e a solidão de Liojorge, entre eles há a movimentação daqueles que carregam o recado, gerando ao final um cortejo unificado. O “lagalhé” adquire lugar de destaque, carregando a alça “à frente, da banda esquerda”: lado nefasto na tradição ocidental e lado ideal para “enquadrar a vítima” na opinião do narrador. Há no narrador sempre a focalização negativa em torno da postura de Liojorge, mas é um Dagobé quem dá o passo de recuo. No momento decisivo, realmente se estabelece um conflito entre o suposto sucessor, Doricão e o moço Liojorge, não o previsto, não por meio de armas, mas somente através de gestos: o Dagobé olhando “curtamente” e falando “em baixo e mal som” demonstra ausência de força no olhar e na fala e assim, “outra chuva começava”, deixando na lama o passado, mas, possivelmente, arrastando nos pés vestígios fortes desse sertão, que nos chega através de Guimarães Rosa sob a forma de um grande recado. Nem serão, nem cidade. Mas um contínuo, uma mistura indissolúvel se instaura, construindo, sob a forma do recado, o mistério da história brasileira.
Referências Bibliográficas:
RiBEIRO, Jõao. Frazes feitas. Rio de Janeiro – Nova Fronteira, 1985
ROSA, João Gumarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1985.
UTÉZA, Francis. Certo Sertão: Estórias. In: Scripta, v.5 – n.10, Belo Horizonte - 2002
WISNIK, José Miguel. O famigerado. In: Scripta, v.5, n.10 - Belo Horizonte – 2002.
      VI – A terceira margem do rio: Um homem aban-dona família e sociedade, para viver à deriva numa canoa, no meio de um grande rio. Com o tempo, todos, menos o filho primogênito, desistem de apelar para o seu retorno e se mudam do lugar. O filho, por vinculo de amor, esforça-se para compreender o gesto paterno; por isso, ali permaneceu por muitos anos. Já de cabelos brancos e tomado por intensa culpa, ele decide substituir o pai na canoa e comuni-ca-1he sua decisão. Quando o pai faz menção de se aproximar, o filho se apavora e foge, para viver o resto de seus dias ruminando o "falimento" e a covardia.
      VII – Pirlimpsiquice: Um grupo de colegiais ensaia um drama para apresentá-lo na festa do colégio. No dia da apresentação, há um imprevisto e um dos atores se vê obrigado a faltar. Como não havia mais possibilidade de se adiar a apresentação, os adolescentes improvisam uma comédia, que e entusiasticamente bem recebida pela platéia.
      VIII – Nenhum, nenhuma: Uma criança, não se sabe se em sonho ou realidade, passa férias numa fazenda, em companhia de um casal de noivos, de um homem triste e de uma velha velhíssima, de quem a noiva cuidava. O casal interrompe o noivado, e o Menino, que conhecera o Amor observando-os, volta para a casa paterna. Lá chegando,
      explode sua fúria diante dos pais, ao notar que eles se suportavam, pois haviam transformado seu casamento num desastre confortável.
      IX – Fatalidade: Zé Centeralfe procura o delegado de uma cidadezinha, queixando-se de que Herculinão Socó vivia tentando seduzir-lhe a esposa. A situação tornara-se tão insuportável que o casal mudara de arraial. Não adiantou: o Herculinão foi atrás. O delegado, misto de filósofo,
      justiceiro e poeta, depois de ouvir pacientemente a queixa, procura o conquistador e, sem a mínima hesitação, mata-o. Justifica o fato como necessário, em nome da paz e do bem-estar do universo.
      X – Sequência: Uma vaca fugitiva retorna a sua fazenda de origem. Decidido a resgatá-la, um vaqueiro persegue-a com incomum denodo. Ao chegar à fazenda para onde a vaca retornara, o vaqueiro descobre que havia outro motivo para sua determinação: a filha do fazendeiro, com quem o rapaz se casa.
      XI – O espelho: Um sujeito se coloca diante de um espelho, procurando reeducar seu olhar, apagando as imagens do seu rosto externo. A progressão desses exercícios lhe permitiu, daí a algum tempo, conhecer sua fisionomia mais pura, a que revela a imagem de sua essência. Linguagem próxima da do ensaio, pelo caráter filosófico do enredo.
      XII – Nada e a nossa condição: O fazendeiro Tio Man'Antônio, com a morte da esposa e o casamento das filhas, sente-se envelhecido e solitário. Decide vender o gado, distribuindo o dinheiro entre filhas e genros. A seguir, divide sua fazenda em lotes e os distribui entre os empregados, estipulando em testamento uma condição que só deveria ser revelada quando morresse. Quando o fato ocorre, os empregados colocam seu corpo na mesa da sala da casa-grande e incendeiam a casa: a insólita cerimônia de cremação era seu último desejo.
      XIII – O cavalo que bebia cerveja: Giovânio era um velho italiano de hábitos excêntricos: comia caramujo e dava cerveja para cavalo. Isso o torna alvo da atenção do delegado e de funcionários do Consulado, que convocam o empregado da chácara de "seo Giovânio", Reivalino, para um interrogatório. Notando que o empregado ficava cada vez mais ressabiado e curioso, o italiano resol-ve então abrir sua casa para Reivalino e para o dele-gado: dentro havia um cavalo branco empalhado. Passado um tempo, outra surpresa: Giovânio leva Reivalino até a sala, onde o corpo de seu irmão Jo-sepe, desfigurado pela guerra, jazia no chão.
      Reivalino é incumbido de enterrá-lo, conforme a tradição cristã. Com isso, afeiçoa-se cada vez mais ao patrão, a ponto de ser nomeado seu herdeiro quando o italiano morre.
      XIV – Um moço muito branco: Os habitantes de Serro Frio, numa noite de novembro de 1872, tem a impressão de que um disco voador atravessou o espaço, depois de um terremoto. Após esses eventos, apareceu na fazenda de Hilário Cordeiro um moço muito branco, portando roupas maltrapilhas. Com seu ar angelical, impõe-se como um ser superior, capaz de prodígios: os negócios de Hilário Cordeiro, o fazendeiro que o acolheu, tem uma guinada es-pantosamente positiva. Depois de fatos igualmente miraculosos, o moço desaparece do mesmo modo que chegara.
      XV – Luas-de-mel: Joaquim Norberto e Sa-Maria Andreza recebem em sua fazenda um casal fugitivo, versão sertaneja de Romeu e Julieta. Certos de que os capangas do pai da moça viria resgatá-la, todos se preparam para um enfrentamento: a casa da fazenda transforma-se num castelo fortificado. E nesse clima de tensão que se celebra o casamento dos jovens, a que se segue a lua-de-mel, que acontece em dose dupla: dos noivos e do velho casal de anfitriões, cujo amor foi reavivado com o fato. Na manhã seguinte, a expectativa se esvazia com a chegada do irmão
      da donzela, que propõe solução satisfatória para o caso.
      XVI – Partida do audaz navegante: Quatro crian-ças, três irmãs e um primo, brincam dentro de casa, aguardando o término da chuva. A caçula, Brejeiri-nha, brinca com o que lhe dava mais prazer: as pala-vras. Inventa uma estória do tipo "Simbad, o maru-jo", que ganha novos elementos quando todos vão para o quintal, brincar a beira de um riacho. Libe-rando sua fantasia, Brejeirinha transforma um ex-cremento de gado no "audaz navegante", colocando-o para navegar riacho abaixo.
      XVII – A benfazeja: Mula-Marmela era mulher de Mumbungo, sujeito perverso que se excitava com o sangue de suas vítimas. Esse vampiro tinha um filho, Retrupé, cujo prazer só diferia do pai quanto à faixa etária das vítimas: preferia as mais frescas. Apesar de amar seu homem e ser correspondida, Mula-Marmela não hesitou em matá-lo e depois cegar Retrupé, de quem se torna guia. Passado algum tempo, resolveu assassiná-lo: percebera que esta seria a única maneira de refrear o instinto de lobiso-mem do rapaz.
      XVIII – Darandina: Um sujeito bem vestido rouba uma caneta, é surpreendido e, para escapar dos que o perseguiam, escala uma palmeira. Uma multidão acompanha atentamente os esforços das autoridades que procuram convencer o rapaz a descer. Resistindo, ele diz frases desconexas e tira toda a roupa, revelando notável equilíbrio físico.
      A sessão de nudismo leva um médico a nova tentativa de diálogo. Ao se aproximar, o médico percebe que o sujeito voltara à normalidade e que, envergonhado, pedia socorro. A multidão, sentindo-se ludibriada, não aceita esta repentina sanidade e se dispõe a linchá-lo. Sentindo o risco, o sujeito berra um grito de louvor a liberdade, motivo bastante para a multidão ovacioná-lo e carregá-lo nos ombros.
      XIX – Substância: O fazendeiro Sionésio apaixona-se por sua empregada Maria Exita, que fora abandonada pela família e criada pela peneireira Nhatiaga. Na fazenda, o ofício de Maria Exita era o de quebrar polvilho, trabalho duro mas que a moça realizava com prazer e competência. Embora preocupado com a ascendência da moça, Sionésio sente que a paixão é maior que o preconceito e pede-a em casamento.
      XX – Tarantão, meu patrão: O fazendeiro João-de Barros-Dinis-Robertes tem uma surpreendente explosão de vitalidade em sua velhice caduca. Como se fora um Quixote, determina-se a matar seu médico: o Magrinho, sobrinho-neto do fazendeiro. Ao longo da viagem rumo à cidade,
      recruta um bando de desocupados, ciganos e jagunços, que acatam sua liderança, pelo carisma natural do velho. Chegando à "frente de batalha", Tarantão percebe que era dia de festa: uma das filhas de Magrinho fazia aniversário. O susto inicial, provocado pela invasão do "exército", transforma-se em alívio quando o velho discursa, dizendo de seu apreço pela família e pelos novos amigos, colecionados ao longo da última cavalgada.
      XXI – Os cimos: O Menino da primeira estória revela agora a face do sofrimento, causado pela doença da Mãe, fato que apressa sua viagem de volta à casa paterna. Os últimos dias de férias são de preocupação. O Menino só relaxava quando via, todas as manhãs e sempre a mesma hora, um tucano se aproximar da casa dos tios, onde se hospedava. Num processo de sublimação, desencadeado pela Beleza da ave, o Menino ganha energia para resistir e transferir à Mãe uma carga de fluidos mentais positivos, que lhe permitam superar a doença. Quando o Tio o procura para comunicar a melhora da Mãe, o Menino experimenta momentos de êxtase, pois só ele sabia o motivo da cura.
      Foco narrativo
      As indicações feitas a seguir são pontuadas com os algarismos que indicam a ordem de publicação de cada estória no livro.
      Terceira pessoa:
      I – "As margens da alegria", II – "Famigerado", III – "Sorôco, sua mãe, sua filha";
      IV – "A menina de lá"; V – "Os iramos Dagobé"; VIII – "Nenhum, nenhuma",
      X – "Seqência";
      XIV – "Um moço muito branco";
      XIX – "Substância" e
      XXI – "Os cimos".
      Primeira pessoa:
      VI – "A terceira margem do rio";
      VII – "Pirlimpsiquice";
      IX – "Fatalidade";
      XI – "O espelho";
      XII – "Nada e a nossa condição";
      XIII – "O cavalo que bebia cerveja";
      XV – "Luas-de-mel";
      XVI – "Partida do audaz navegante";
      XVII – "A benfazeja";
      XVIII – "Darandi na" e XX – "Tarantão, meu pa-trão".
      Dessas onze estórias, apenas duas apresentam o narrador como protagonista: "O espelho" e "Pirlimpsiquice"; nas outras, o relato e feito por um espectador privilegiado, que presencia a ação e registra suas impressões a respeito do que assiste. O narrador pode ser também uma personagem secundária da estoira, com laços de parentesco ou de amizade com o protagonista.
      Quanto ao emprego dos tempos verbais, nota-se que, na maior parte das estórias, o relato se faz através de uma mistura do pretérito perfeito com o pretérito imperfeito do indicativo.
      Espaço
      A maioria das est6rias se passa em ambiente rural não especificado, em sítios e fazendas; algumas tem como cenário pequenos lugarejos, arraiais ou vilas. Os ambientes são apresentados com poucos mas precisos toques: moldura de altos morros, vas-tos horizontes, grandes rios, pasto extensos, escassas lavouras. Duas estórias, no entanto – "O espelho" e "Darandina" –, transcorrem em cidades, pressupostas até como grandes centros urbanos, pelo fato de mencionarem a existência de secretarias de governo, hospício, corpo de bombeiros, jornalistas, parques de diversões, prédios de repartições publicas e outros serviços tipicamente urbanos.
      Personagens
      Embora variem muito quanto a faixa etária e experiência de vida, as personagens se ligam por um aspecto comum: suas reações psicossociais extrapolam o limite da normalidade. São crianças e adolescentes superdotados, santos, bandidos, gurus sertanejos, vampiros e, principalmente, loucos: sete estórias apresentam personagens com este traço.
      (Paráfrase do livro Primeiras Estórias – Roteiro de Leitura – Dácio Antônio de Castro – Editora Ática – Série Princípios)