LER É BACANA

" Um público comprometido com a leitura é crítico, rebelde, inquieto, pouco manipulável... " Mario Vargas Llosa















31 de out. de 2011

Pós-Modernismo no Brasil

(1945- +/- 1960)

A literatura brasileira, assim como o cenário sócio-político, passa por transformações.
A prosa tanto no romance quanto nos contos busca uma literatura intimista, de sondagem psicológica, introspectiva, com destaque para Clarice Lispector. Ao mesmo tempo, o regionalismo adquire uma nova dimensão com Guimarães Rosa e sua recriação dos costumes e da fala sertaneja, penetrando fundo na psicologia do jagunço do Brasil central. Um traço característico comum a Clarice e Guimarães Rosa é a pesquisa da linguagem, por isso são chamados instrumentalistas. Enquanto Guimarães Rosa preocupa-se com a manutenção do enredo com o suspense, Clarice abandona quase que completamente a noção de trama e detém-se no registro de incidentes do cotidiano ou no mergulho para dentro dos personagens.
Na poesia, surge uma geração de poetas que se opõem às conquistas e inovações dos modernistas de 22. A nova proposta foi defendida, inicialmente, pela revista Orfeu (1947). Assim, negando a liberdade formal, as ironias, as sátiras e outras “brincadeiras” modernistas, os poetas de 45 buscam uma poesia mais “equilibrada e séria”. Os modelos voltam a ser os Parnasianos e Simbolistas. Principais autores (Ledo Ivo, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Geir de Campos e Darcy Damasceno). No fim dos anos 40, surge um poeta singular, pois não está filiado esteticamente a nenhuma tendência: João Cabral de Melo Neto.

Referências históricas

·         1945 = fim da 2ª GM,
·         início da Era Atômica (Hiroxima e Nagasaki),
·         ONU, Declaração dos Direitos do Homem,
·         Guerra Fria
·         No Brasil, fim da ditadura Vargas,
·         Redemocratização brasileira,
·         Retomada de perseguições políticas,
·         Ilegalidades e exílios.

Autores Principais

Guimarães Rosa (1908 - 1967)

Mineiro, formou-se em Medicina e clinicou pelo interior, foi ministro e pela carreira diplomática esteve em Hamburgo, Bogotá e Paris. Foi eleito membro da ABL e faleceu 3 dias depois de sua posse.
A obra de G. Rosa é extremamente inovadora e original. Seu livro, Sagarana (1946), vem colocar uma espécie de marco divisor na literatura moderna do Brasil: é uma obra que se pode chamar de renovadora da linguagem literária. Seu experimentalismo estético, aliando narrativas de cunho regionalista a uma linguagem inovadora e transfigurada, veio transformar completamente o panorama da nossa literatura.
O livro Grande Sertão: Veredas (1956), romance narrado em primeira pessoa por Riobaldo num monólogo ininterrupto onde o autor e o leitor parecem ser os ouvintes diretos do personagem, G. Rosa recuperou a tradição regionalista, renovando-a. Há um clima fantástico na narrativa: Riobaldo conta suas aventuras de jagunço que quer vingar a morte de seu chefe, Joca Ramiro, assassinado pelo bando de Hermógenes.
Sua narrativa é entremeada por reflexões metafísicas em torno dos acontecimentos e dois fatos se repropõem constantemente: seu pacto com o Diabo e seu amor por Diadorim (na verdade, Deodorina, filha de Joca Ramiro, disfarçada de jagunço). As dúvidas de Riobaldo têm raízes místicas e sua narrativa torna-se então não mais um documento regionalista, mas uma obra de caráter universal, que toca em problemas que inquietam todos os homens: o significado da existência, as dimensões da realidade. Mas não é só isto que é novo em G. Rosa: sua linguagem é extremamente requintada.
Recuperando as matrizes arcaicas da língua portuguesa e fundindo-as com a fala sertaneja, G. Rosa chega a criar um linguajar mítico, onde o novo e o primitivo perdem as dimensões tornando-se um linguajar ao mesmo tempo real e irreal, pessoal e universal. Arcaísmos, neologismos, rupturas, fusões, toda uma técnica elaboradíssima que torna sua escrita única na literatura brasileira.
Grande Sertão: Veredas e as novelas de Corpo de Baile incluem e revitalizam recursos da expressão poética: células rítmicas, aliterações, onomatopéias, ousadias mórficas, elipses, cortes e deslocamentos de sintaxe, vocabulário insólito, arcaico ou neológico, associações raras, metáforas, anáforas, metonímias, fusão de estilos.
! Nomopadrofilhospiritossantamêin! Avança, cambada de filhos-da-mãe, que chegou minha vez!... / E a casa matraqueou que nem panela de assar pipocas, escurecida à fumaça dos tiros, com os cabras saltando e miando de maracajás, e Nhô Augusto gritando qual um demônio preso e pulando como des demônios soltos. / — Ô gostosura de fim-de-mundo!...” (-A Hora e a Vez de Augusto Matraga)
Obras : Sagarana (1946), Corpo de Baile (depois desdobrado em Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá no Pinhém, Noites do Sertão, 1956), Grande Sertão: Veredas (1956), Primeiras Estórias (1962), Tutaméia - Terceiras Estórias (1967): Estas Estórias (1969), Ave, Palavra (1970).

Grande Sertão: Veredas:  O artista ordena o caos  

Olhe: conto ao senhor. Se diz que, no bando de Antônio Dó, tinha um grado jagunço, bem remediado de posses - Davidão era o nome dêle. Vai, um dia, coisas dessas que às vêzes acontecem, êsse Davidão pegou a ter mêdo de morrer. Safado, pensou, propôs êste trato a um outro, pobre dos mais pobres, chamado Faustino: o Davidão dava a êle dez contos de réis, mas, em lei de caborje — invisível no sobrenatural — chegasse primeiro o destino do Davidão morrer em combate, então era o Faustino quem morria, em vez dêle. E o Faustino aceitou, recebeu, fechou. Parece que, com efeito, no poder de feitiço do contrato êle muito não acreditava. Então, pelo seguinte, deram um grande fogo, contra os soldados do Major Alcides do Amaral, sitiado forte em São Francisco. Combate quando findou, todos os dois estavam vivos, o Davidão e o Faustino. A de ver ? Para nenhum dêles não tinha chegado a hora-e-dia. Ah, e assim e assim foram, durante os meses, escapos, alteração nenhuma não havendo; nem feridos êles não saíam...Que tal, o que o senhor acha? Pois, mire e veja: isto mesmo narrei a um rapaz de cidade grande, muito inteligente, vindo com outros num caminhão, para pescarem no Rio. Sabe o que o môço me disse? Que era assunto de valor, para se compor uma estória em livro. Mas que precisava de um final sustante!, caprichado. O final que êle daí imaginou, foi um: que, um dia, o Faustino pegava também a ter mêdo, queria revogar o ajuste! Devolvia o dinheiro. Mas o Davidão não aceitava, não queria, por forma nenhuma. Do discutir, ferveram nisso, ferravam numa luta corporal. A fino, o Faustino se provia na faca, investia, os dois rolavam no chão, embolados. Mas, no confuso, por sua própria mão dêle, a faca cravava no coração do Faustino, que falecia...

Apreciei demais essa continuação inventada. A quanta coisa limpa verdadeira uma pessoa de alta instrução não concebe! Aí podem encher êste mundo de outros movimentos, sem os êrros e volteios da vida em sua lerdeza de sarrafaçar. A vida disfarça? Por exemplo. Disse isso ao rapaz pescador, a quem sincero louvei. E êle me indagou qual tinha sido o fim, na verdade de realidade, de Davidão e Faustino. O fim? Quem sei. Soube sòmente só que o Davidão resolveu deixar a jagunçagem - deu baixa do bando, e, com certas promessas, de ceder uns alqueires de terra, e outras vantagens de mais pagar, conseguiu do Faustino dar baixa também, e viesse morar perto dêle, sempre. Mais dêles, ignoro. No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá êrro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso...  (Guimarães Rosa)



Clarice Lispector (1925 - 1977)

Ucraniana, veio com meses para o Brasil - por isso, sentia se “brasileira”. Tem por formação Direito. Em 1944 forma-se e publica o livro que escreveu durante o curso - Perto do Coração Selvagem surpreendendo a crítica e agradando ao público.
Casa-se com um diplomata, afastando-se do Brasil durante longos períodos, mas sem interromper a produção artística.
Principal nome da poesia intimista da moderna literatura brasileira, questionamento do ser, “estar-no-mundo”, a pesquisa do ser humano, resultando no romance introspectivo.

Características de sua producão literária:
·                           sondagem dos mecanismos mais profundos da mente humana;
·                           técnica “impressionista” de apreensão dessa realidade interior (predominância de impressões, de sensações);
·                           ruptura com a seqüência linear da narrativa;
·                           predomínio do tempo psicológico e, portanto, subversão do tempo cronológico;
·                           características físicas das personagens diluem-se: muitas nem nome apresentam;
·                           as ações passam a ter importância secundária, servindo principalmente como ilustração de características psicológicas das personagens (introspecção psicológica);
·                           introdução da técnica do fluxo da consciência - quebra os limites espaço-temporais e o conceito de verossimilhança, fundindo presente e passado, realidade e desejo na mente dos personagens, cruzando vários eixos e planos narrativos sem ordem ou lógica aparente;
·                           presença da epifania (“revelação”): aparentemente equilibradas e bem ajustadas, subitamente as personagens sentem um estranhamento frente a um fato banal da realidade;
·                           suas principais personagens são mulheres, mas não se limitam ao espaço do ambiente familiar: Clarice visa a atingir valores essenciais humanos e universais tais como a falsidade das relações humanas, o jogo das aparências, o esvaziamento do mundo familiar, as carências afetivas e as inseguranças delas decorrentes, a alienação, a condição da mulher.
·                           fusão de prosa e poesia, com emprego de figuras de linguagem: metáforas, antíteses (eu x não-eu, ser x não ser), paradoxos, símbolos e alegorias, aliterações e sinestesias;
·                           uso de metalinguagem - “Algumas pessoas cosem para fora; eu coso para dentro”- em associação com os processos intimistas e psicológicos, político-sociais, filosóficos e existenciais (A Hora da Estrela, 1977). “Depois que descobri em mim mesma como é que se pensa, nunca mais pude acreditar no pensamento dos outros”.

Obras mais importantes:
·                           Romances : Perto do Coração Selvagem (1944); A Cidade Sitiada (1949); A Maçã no Escuro (1961); A Paixão segundo G. H. (1964); Água Viva (1973); A Hora da Estrela (1977).
·                           Contos : Alguns Contos (1952); Laços de Família (1960); A Legião Estrangeira (1964); Felicidade Clandestina (1971), Imitação da Rosa (1973), A Via - Crucis do Corpo (1974)

Texto: Fragmento de Perto do Coração Selvagem

No momento em que a tia foi pagar a compra, Joana tirou o livro e meteu cuidadosamente entre os outros, embaixo do braço. A tia empalideceu. Na rua a mulher buscou as palavras com cuidado: — Joana... Joana, eu vi...
Joana lançou-lhe um olhar rápido. Continuou silenciosa: — Mas você não diz nada? — não se conteve a tia, a voz chorosa.— Meu Deus, mas o que vai ser de você? — Não se assuste, tia.
— Mas uma menina ainda... Você sabe o que fez ? — Sei...
— Sabe... sabe a palavra...?
— Eu roubei o livro, não é isso?
— Mas, Deus me valha! Eu já nem sei o que faço, pois ela ainda confessa!
— A senhora me obrigou a confessar.
— Você acha que se pode... que se pode roubar? — Bem... talvez não.
— Por que então...? — Eu posso.
— Você?! — gritou a tia.
— Sim, roubei porque. quis. Só roubarei quando quiser. Não faz mal nenhum.
— Deus me ajude quando faz mal Joana?

— Quando a gente rouba e tem medo. Eu não estou contente nem triste.

                                                            Clarice Lispector

João Cabral de Melo Neto (1920 - )

Pernambucano, passa a infância em engenhos de açúcar em contato com a terra e o povo (o que despertou seu interesse pelo folclore nordestino e pela literatura de cordel), primo de Manuel Bandeira e Gilberto Freire).

Estreou em 1942 com Pedra do Sono de forte influência de Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes. Ao publicar O Engenheiro, em 1945, traça os rumos definitivos de sua obra. Em 1956, escreve o poema dramático Morte e Vida Severina, que, encenado em 1966, com músicas de Chico Buarque, consagra-o definitivamente.
Só pertenceria à Geração de 45 se levado em conta o critério cronológico; pois esteticamente afasta-se da proposta do grupo.

Características de sua produção literária: no início  apresenta uma tendência à objetividade, convivendo com imagens surrealistas e oníricas (relativas aos sonhos): aos poucos, afasta-se dessa influência e aprofunda a tendência à substantivação, à economia da linguagem, submetendo as palavras a um processo  de depuração, com uso de metáforas, personificações, alegorias e metonímias (a pedra; a faca; o cão); a partir de 1945, influenciado por uma concepção arquitetônica, procede à geometrização do poema, aproximando a arte do Poeta à do Engenheiro; a preocupação com o descarnamento, com a confecção da poesia dessacralizada, afastada cada vez mais do subjetivismo e da introspecção, leva-o à elaboração do poema objeto.
Nele, o fruir poético atinge-se através da lógica do raciocínio, da razão, eliminando-se emoções superficiais (ruptura total com o sentimentalismo); o Poeta questiona o próprio ato de escrever e a função da poesia; na década de 50, surge e amadurece a preocupação política e principalmente a denúncia social do Nordeste e sua gente: os “severinos” retirantes, as tradições e o folclore regional, a herança medieval, a estrutura agraria canavieira, injusta e desigual...

Morte e Vida Severina, obra mais popular de João Cabral, é um auto de Natal do folclore pernambucano. Sua linha narrativa segue dois movimentos que aparecem no título: “morte” e “vida”. No primeiro movimento, há o trajeto de Severino, personagem-protagonista, que segue do sertão para Recife, em face da opressão econômico-social. Severino tem a força coletiva de um personagem típico: representa o retirante nordestino. No segundo movimento, o da “vida”, o autor chama a atenção para a confiança no homem e em sua capacidade de resolver problemas.
Obras:
·                           Prosa : Considerações sobre a Poeta Dormindo (1941); Juan Miró (1950)
·                           Poesia : Pedra do Sono (1942); Engenheiro (1945); Psicologia da Composição (1947); O cão sem Plumas (1950); Duas Águas (os livros anteriores mais Morte e Vida Severina, A Educação pela Pedra (1966), Poesias Completas (1968); Museu de Tudo (1975); Escola das Facas (1987); Auto do Frade (1984); Agrestes (1985); Crime na Calle Relator (1987); Sevilha Andando (1987-1993).

Morte e Vida Severina:  O retirante explica ao leitor quem é e a que vai
— O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. Como há muitos Severinos, que é santo de romaria, deram então de me chamar Severino de Maria; como há muitos Severinos com mães chamadas Maria. fiquei sendo o da Maria do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco: há muìtos na freguesia, por causa de um coronel que se chamou Zacarias e que foi o mais antigo senhor desta sesmaria. Como então dizer quem fala ora a Vossas Senhorias? Vejamos: é o Severino da Maria do Zacarias, lá da serra da Costela, limites da Paraíba.
Mas ísso ainda diz pouco: se ao menos mais cinco havia com nome de Severino filhos de tantas Marias mulheres de outros tantos, já finados, Zacarias, vivendo na mesma serra magra e ossuda em que eu vivia. Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas, e iguais também porque o sangue que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina: que é a morte de que se morre de velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia (de fraqueza e de doença é que a morte severina ataca em qualquer idade, e até gente não nascida). Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar estas pedras suando-se muito em cima, a'de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar algum roçado da cinza, Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra. (Cabral de Melo Neto)